domingo, 7 de fevereiro de 2010

A Moça Tecelã, de Marina Colasanti (Interpretação I )

"Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

Fim

Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão.
Dentre outros, escreveu E por falar em amor, Contos de amor rasgados, Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher, Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Esse amor de todos nós, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento.
Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. Casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

(Texto e perfil extraídos do livro "Doze Reis e a
Moça no Labirinto do Vento", Global Editora,
RJ, 2000.)


Resenha do Jô:
Este conto de fadas narra o dia-a-dia de uma menina que tece, tece, tece. Seus momentos, passa-os ela a bordar, carinhosamente, a Vida e a Natureza. E, sob cores diversas, em seu tear, concretizam-se os mais legítimos sentimentos, que se tornam reais, criativos, válidos, práticos, transmutando-se em forma e movimento assim que tecidos.
Contente em seu labor, vai imaginando e tecendo, materializando auroras, noites, sol, chuva, aves, bichos, paisagens...
Nada lhe falta: alimentos (leite, peixes etc.), roupas... Tudo lhe sai do tear, pronto e bonito. Perfeccionista moça.
Até que reparou-se envolta em uma cósmica e desamparada solidão, necessitando de alguém junto a si, para sempre: constrói então, dos fios mais fortes e belos, um companheiro, o esperado esposo. Passa logo a sonhar com filhos, lar, vizinhos, com um cotidiano pacato e social, enfim.
O homem, porém, tinha idéias opostas: após conhecer o poder do tear e a habilidade da moça, cresceu em ambição: trancafiou-a, cercando-a de ordens absurdas: uma casa melhor e maior; depois um palácio, com pompas, torres, tesouros, jardins, criadagem... Mas amor que era bom, não lhe dava. Sequer a notava.
Inteligente, sensível e decidida, uma noite ela quis se desfazer de todo aquele luxo inútil: rápida, destece castelo, ouro, prata, animais e o próprio opressor. Livre, finalmente!

...É quando percebe a manhã que tenta chegar, enviada pelos segredos insondáveis da Natureza: auxilia-a, manejando com prazer o tear, conduzindo-a desde as misteriosas brumas do tempo. Música nascente.
Traz com a aurora as nuvens, os pássaros, o arvoredo, os ventos, os sons maviosos da harmonia universal. (Harmonia que, interrompida pela presença dominadora do ex-marido, ressurgia agora, por suas mãos tenras, inefáveis.)
Retornara afinal à sua vida singela e ditosa, povoada de simplicidade e alegria, bondade e sonhos, gentileza e primaveras.




Nota:
Ocupei-me da obra da escritora Marina Colasanti por 500 (quinhentas) horas, até 08/02/2010.

Nenhum comentário: